No último dia 24 de janeiro, acompanhamos o julgamento de um dos casos que envolvem o ex-presidente Lula na Operação Lava-Jato (referente ao apartamento triplex). A Oitava Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), por unanimidade, manteve a condenação imposta pelo juiz Sergio Moro, elevando a pena para 12 anos e um mês de prisão pela prática dos delitos de corrupção passiva e de lavagem de capitais.
Como efeito do decisório, os desembargadores indicaram que após exaurida a segunda instância, com o julgamento dos embargos de declaração, deverá ser dado início ao cumprimento provisório da pena aplicada, independentemente da interposição de recursos especial e extraordinário pela defesa. Dessa forma, a Corte refletiu a posição firmada pela maioria dos ministros do STF por oportunidade do julgamento do HC 126.292/SP, em fevereiro de 2016.
A questão ora proposta não objetiva analisar o mérito do julgamento da apelação do ex-presidente ou os efeitos na seara eleitoral, mas sim, de estabelecer a imprescindibilidade do cumprimento das regras previstas na Constituição de 1988, em especial, a que determina que o cidadão somente pode ser considerado culpado após o trânsito em julgado da condenação: a denominada presunção de inocência. Desse modo, até que não haja mais possibilidade de interposição de recursos que tenham por objeto a revisão da condenação aplicada, o acusado deve ser tratado como inocente.
Por consequência, a privação da liberdade não pode ser efetivada, excetuadas as situações em que estejam presentes os pressupostos da prisão preventiva (art. 312 do CPP), antes do cumprimento do disposto no art. 5, LVII, da Constituição Federal.
A presunção de inocência deve ser compreendida (e respeitada) como uma garantia imutável do acusado no processo penal, seja ele quem for,não estando suscetível a eventual oscilação jurisprudencial do STF, bem como do clamor social. Equivocado, portanto, estabelecer que “o núcleo da presunção de inocência, garantia indispensável ao próprio Estado democrático de Direito, não esbarra na necessidade do trânsito em julgado da decisão condenatória, mas tangencia o imperativo da comprovação da culpabilidade na forma da lei e o duplo grau de jurisdição”.
Se os últimos movimentos da Suprema Corte demonstram que o tema está longe de qualquer consenso, necessário seu trato de maneira academicamente robusta buscando contribuir com a discussão.
Dessa forma, a análise do tema, a seu modo, passa a configurar um movimento de resistência pela salvaguarda dos direitos do acusado, ambicionando minimizar a incidência de julgamentos precipitados cada vez mais frequentes no Poder Judiciário.
Pretende-se, em suma, demonstrar que a sanha pela punição de eventuais criminosos não pode ser maior do que a preocupação de não submeter um inocente a uma injusta condenação. Razão pela denota-se a fragilidade do argumento de que a presunção de inocência “não pode ser interpretada ao pé da letra, literalmente, do contrário os inquéritos e os processos não seriam toleráveis, posto não ser possível inquérito ou processo em relação a uma pessoa inocente”.
Diante disso, rigorosamente falando, passando da mera retórica para a política, a visão da pré-ocupação de inocência (incluso como norma de tratamento, norma probatória ou norma de juízo) traz à tona o que há de determinante na gênese da presunção, deixando ultrapassar seu mero escopo jurídico: a natureza de regra de fechamento, quer dizer, horizonte de expectativa a ser preenchido com a decisão político-democrática auferida na sentença quando persistir a dúvida a ser convertida em certeza jurídica, estado este apenas abalável pelo trânsito em julgado final de sentença condenatória.
Enfim, a pré-ocupação de inocência, tal qual um título ao portador dos acusados em geral frente ao poder punitivo, além de ter papel central na seara do convencimento, é a aliada maior para a maximização das expectativas democráticas.
É ter claro, portanto, que o acesso aos recursos até o trânsito em julgado é uma garantia processual enraizada na Constituição, um direito fundamental inegociável de todo o acusado que se vê constantemente afetado por trajetórias jurisprudenciais oscilantes e flexibilizadoras de postulados basilares de nosso ordenamento jurídico.
Diante de tal compreensão, evidencia-se a grave insegurança jurídica resultante das decisões proferidas no Habeas Corpus 126.292 e nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43 e 44, que a partir de uma errônea interpretação acerca do princípio da presunção de inocência, bem como de uma inadequada comparação com ordenamentos jurídicos de outros países, acabaram por fulminar a indispensável garantia do cidadão no processo penal.
“Em síntese, deve-se ter claro que a presunção de inocência não pode ser restringida após o julgamento de segunda instância.”
Raciocinar desta maneira é negar vigência aos princípios consagrados tanto na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão quanto na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), os quais restaram ratificados pelo Brasil no conteúdo do texto constitucional atualmente vigente.
Mesmo diante do contexto político partidário demasiadamente ressaltado em manifestações acerca do tema, que parecem olvidar que os efeitos do (equivocado) posicionamento da maioria dos ministros do STF repercutem há quase dois anos em diversos processos criminais em todo o país, evidencia-se que o julgamento do ex-presidente Lula trouxe aos holofotes, ao contrário do recentemente afirmado pela ministra-presidente Cármen Lúcia, que já passa da hora do Plenário da Corte rever o entendimento firmado no HC, deixando de lado a insistência em não reconhecer (de uma vez por todas) que a execução provisória da pena é um inconstitucional.
Caso contrário, sendo mantido o cenário atual, como disse o poeta lusitano, Inês é morta. E a liberdade também.
Paulo Saint Pastous Caleffi é mestre e especialista em Ciência Criminais pela PUC-RS.
Fonte: Justificando